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Condição da sociedade brasileira: ontem, antes de ontem e hoje


Lucas Pires Ribeiro[1]

Ronilton Delcides Rodrigues Júnior[2]


O Brasil caminha para um ano e meio de pandemia, envolto num cenário de crise humanitária e sanitária. Concomitantemente com esses problemas, existem tantos outros que passam despercebidos do imaginário social. Problemas que são estruturais, de caráter histórico. Não é nenhum segredo que a vida se tornou algo banal no país que já perdeu mais de meio milhão de pessoas, somente em dados oficiais, para a pandemia de coronavírus. No entanto, quando se olha o processo histórico, sem negar a responsabilidade do governo federal diante do desastre humanitário e sanitário que toma conta do país, percebe-se que no Brasil a noção de vida sempre foi banal, principalmente se a vida for das camadas subalternizadas; negros e povos originários. Nesse sentido, procuraremos demonstrar ao longo desse pequeno ensaio que o reflexo do que somos hoje é a continuidade do que fomos ontem e antes de ontem.


Quando os europeus chegaram com o processo de colonização na América, nada de descobrimento, mas um processo de encobrimento do outro conforme defende Enrique Dussel no clássico livro 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade, o processo de colonização se pautou na invisibilidade do outro, a saber, invisibilidade dos povos originários a partir do encobrimento e negação dos modos de vida, das manifestações religiosas, das formas de comunicação, dos valores culturais, dos costumes, das formas de organização social, política e cultural e assim por diante. Esses e tantos outros valores, muito diferente daqueles valores inerentes aos países ibéricos, centrados no cristianismo e no capitalismo em ascensão, foram apresentados e interpretados como costumes bárbaros pela leitura e literatura europeia presente em ensaios, crônicas e livros de europeus que percorrem a América desde a implementação do projeto colonial.


No entanto, apesar da relevância dessa vasta literatura, o intuito nesse pequeno ensaio não está em desnudar essa literatura centrada no modelo europeu, apresentado como modelo civilizacional em detrimento das outras formas de organização social dos inúmeros povos originários da América. Intenta-se, com essa reflexão, apresentar que o projeto de colonização do Brasil e da América de uma forma em geral, pautado em nome do progresso e da modernidade, esteve marcado pela banalidade da vida, quando a vida, no primeiro momento dos povos originários e depois dos negros escravizados, foi interpretada como vida sem valor, corpo sem “alma” e, portanto, sujeito a todos os tipos de atrocidades.


Na medida que observamos o que ocorre no Brasil contemporâneo, quando um pouco mais de meio milhão de vidas perdidas não faz com que a sociedade entre em convulsão social contra os atores responsáveis por essas mortes, não podemos perder do horizonte de que a estrutura social, a própria formação do Brasil a partir do projeto colonial português, teve na violência e na morte do outro um modus operandi. À violência que o povo brasileiro está sendo submetido nesse momento, vítima da fome, do desemprego, da pandemia, do neoliberalismo e do neofascismo, não é uma invenção do tempo presente, é a continuidade de uma formação histórica e social que sempre, guardadas alguns períodos históricos, se voltou de forma violenta contra o seu próprio povo.


Por exemplo, diante do genocídio contra os povos indígenas, o projeto de colonização seguiu o seu curso de encobrimento, roubo e violência, incluindo nesse processo os negros oriundos do continente africano. Negros que foram sequestrados de sua terra natal, trazidos para um espaço desconhecido e submetidos a todos os tipos de violência dentro do continente americano. Violência física, modo de coerção inerente ao processo de escravidão, mas outras formas de violência também, tais como a violência religiosa, linguística, cultural, entre tantas outras. Segregação/violência/encobrimento trazendo como resultado o cenário de destruição e morte que se fez presente ao longo do processo histórico e muito distante de se findar com a abolição da escravatura no final do Oitocentos.

Pensando por meio de uma estrutura de longa duração, passando pelo período colonial, imperial e dentro da primeira, segunda e terceira república, os povos originários, os negros escravizados e depois libertos, exceto no período muito recente de nossa história, nunca forma pensados pela burguesia dominante como civilizações, grupos, indivíduos, ou mesmo comunidades pertencentes a sociedade. Diante dessa leitura em torno do encobrimento histórico, da violência atuando cotidianamente, não pode nos surpreender a pulsão de morte que toma conta de parte da sociedade brasileira na contemporaneidade, principalmente quando o morto, física ou culturalmente, pertence as camadas subalternizadas; negros, mulheres, indígenas, quilombolas e comunidade LGBTQIA+. A pulsão de morte dificilmente será compreendida se não for feito uma leitura histórica do que fomos enquanto sociedade. Nesse sentido, a história nos oferece condições de compreender o que fomos e o que somos na atualidade.


Fomos o país da violência e da escravidão dos povos originários e dos negros do continente africano por quase quatro séculos. Somos, infelizmente, o país da pandemia, o país do racismo estrutural, o país das privatizações, o país da destruição do estado, o país do neoliberalismo autoritário, onde e quando o gestor da morte intensifica o seu projeto de destruição sem ser incomodado pelas “instituições”. No entanto, mais do que uma invenção do tempo presente, os fenômenos apresentados nos pertencem historicamente.


Diante do processo histórico e estrutural que a maioria da população foi submetida, levando em consideração que desde o período colonial negros e povos originários sempre foram, no quesito número, maioria, parece que no tempo presente, apesar das importantes mobilizações em defesa da vida, da vacina, do auxílio emergencial e da comida no prato, um pouco mais de meio milhão de mortes não faz com que o Brasil, como um todo, pare tudo e enfrente os seus algozes, a saber, as elites dominantes e os seus representantes. Elites, ou burguesia como ressalta Emicida, que são herdeiras do projeto colonial e imperial, tendo sua estrutura financeira e leitura de sociedade centrada na dizimação dos povos originários e dos negros escravizados.


Hoje, enquanto o povo brasileiro padece diante da pandemia, padece diante da necropolítica/neoliberal promovida pelo governo federal, a burguesia brasileira se enriquece de forma considerável. O capitalismo, conforme defende Boaventura de Sousa Santos no livro A Cruel Pedagogia do Vírus, faz da crise uma condição permanente. Enquanto a crise sanitária e humanitária nos enlouquece, nos tira amigos, amigas e familiares, o patrimônio público, o estado brasileiro, é entregue rapidamente pelos neoliberais tupiniquins as empresas multinacionais. Porém, apesar do cenário e da prática evidenciarem o contrário, nem tudo é desespero.


Apesar da violência, do genocídio e do encobrimento que foram submetidos os povos originários e os negros escravizados, não faltou luta, não faltou resistência das camadas subalternas ao longo do processo histórico. Essa trajetória de resistência, de enfrentamento, manifestando-se historicamente e não sendo diferente nos dias atuais, faz com que o desespero seja suplantado por um fito de esperança. Esperança de que, mais uma vez, a sociedade brasileira encontrará e terá condições de enfrentar e resistir.


O passado na América Latina, como procuramos demonstrar ao longo desse pequeno ensaio, é marcado pela violência contra a maioria da população. Essa constatação nos oferece melhores condições de entender que o processo de violência sempre foi uma condição do capitalismo no continente americano. Nesse sentido, entende-se que a situação do tempo presente não é, necessariamente, uma invenção do próprio tempo presente, mas um processo de longa duração. No entanto, é possível modificar essa teia de violência, genocídio e encobrimento histórico tão perceptível na conjuntura atual. Para isso, é fundamental fazermos como os nossos ancestrais indígenas e negros fizeram e continuam fazendo, a saber, resistir. É necessário fazer do luto, desse luto coletivo que toma conta de nós, um meio para se tornar verbo.





[1] Professor de História do Brasil da Universidade Estadual de Goiás, Unidade Universitária de Itapuranga. [2] Discente do curso de História da Universidade Estadual de Goiás, Unidade Universitária de Goianésia.


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