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Foto do escritorLucas Pires

Continuaremos na sociedade do embrutecimento


Imagem: https://6minutos.com.br/

Diante da consolidação do modelo neoliberal no ocidente, tendo contribuído somente para o aumento da desigualdade social, acreditei, assim como o filósofo Slavoj Zizek[1], que a pandemia do Coronavírus daria um golpe mortal no capitalismo, desnudaria, assim como tem desnudando, a face perversa desse modelo político e econômico que não se importa com nenhum tipo de vida, excetuando a manutenção de lucro para atender os interesses da elite financeira. Acreditei na possibilidade de outro modelo de sociedade, outro modo de vida.


Acreditei que a maioria da sociedade, principalmente dos países periféricos do sistema capitalista, entenderia que não é mais possível, se é que um dia tenha sido, viver diante de um modelo de sociedade tão excludente como é o capitalismo. Exclusão que impossibilita à maioria da população de ter acesso a serviços básicos, tais como o de saúde, educação, moradia e alimentação. Serviços essenciais para a dignidade da vida. Cheguei imaginar pessoas saindo às ruas gritando palavras de efervescência social: “Outra sociedade é possível”.


No entanto, minha utopia foi rapidamente suplantada pela realidade social. Não há nada mais difícil para um utópico do que reconhecer a importância da realidade. Diante da pandemia, quando comecei a fazer uma análise mais atenta e cuidadosa do comportamento social, percebi que uma parcela considerável da sociedade encontra-se embrutecida. Serão os embrutecidos, pela quantidade, os garantidores da manutenção do sistema de rapina após a pandemia.


Para compreender o fenômeno é necessário entender como um indivíduo se torna embrutecido. O ser embrutecido geralmente possui algumas características; individualista, dominado por um sentimento de ódio, de intolerância, avesso a empatia, fundamentalista religioso, machista, racista, homofóbico, xenófobo, tem aversão aos pobres, mesmo sendo pobre, aversão à luta de classes, faz de tudo para desconstruir o estado democrático de direito, se posiciona contrário aos direitos humanos, nega as mudanças climáticas e, por último, mas não menos importante, foi convencido que a ciência e a produção do conhecimento científico são inúteis se comparadas às suas crenças.


Além de tudo, o ser embrutecido tem muito orgulho da sua incapacidade e recusa de compreender, sente-se orgulhoso da ignorância. O ignorante não é necessariamente aquele que não sabe, mas é todo aquele que mesmo tendo condições de aprender acaba recusando, volta-se para o conforto do seu pequeno mundo e esbraveja contra todos e todas que sabem. Em tese, todo ser embrutecido tem um pouco de inveja dos que possuem conhecimento. Essa tese explica, em parte, tanto ódio destinado aos produtores de conhecimento.


Recentemente o médico Dráuzio Varella participou do programa Roda Viva e, entre os vários assuntos, mencionou a inveja que os ignorantes têm dos produtores de conhecimento. Além disso, observou quais são as consequências para a ciência quando os ignorantes assumem os diferentes estágios de poder:

Quando você tem pessoas despreparadas que assumem o poder das mais variadas áreas, elas se sentem inferiorizadas diante daqueles que têm cultura, diante dos cientistas, diante dos intelectuais, então elas perseguem, tem sido assim o tempo inteiro. Perseguem, tratam com desprezo, não dão valor. E a ciência passa por isso, você não dá valor (...) O Brasil não vai sair do estágio em que se encontra sem ciência e sem tecnologia, não há nenhuma possibilidade (...) Esse desprezo pela tecnologia e pela ciência é pura manifestação de ignorância[2].

Quando pensa sobre os motivos que levam ao menosprezo da ciência no Brasil, Dráuzio Varella aponta para a incapacidade das pessoas ignorantes que assumem cargos de poder de perceberem o quanto a ciência, concomitantemente com a valorização da universidade pública, é importante para o desenvolvimento social do país. Por último, afirma categoricamente que o desprezo pela construção do conhecimento científico está atrelado à ignorância que determinados agentes possuem. Ao acompanhar a entrevista de Dráuzio Varela me lembrei de Paulo Freire. O mais importante educador brasileiro quando olhou e procurou compreender o “embrutecido”, chegou a seguinte conclusão: “Quando a educação não é emancipatória o sonho do oprimido é tornar-se opressor[3]”.


Nesse sentido, todos aqueles que procuram compreender melhor a opressão praticada pelos oprimidos, representada pelo embrutecimento coletivo, encontrarão na recusa de parte considerável da sociedade para a produção do conhecimento científico, quando essa parcela não poupa dos seus ataques enraivecidos professores/as e estudantes, principalmente das universidades públicas, importante explicação. A negação da produção do conhecimento intelectual, tendo como contrapartida o culto à ignorância e ao ignorante, pode ser mais bem explicada quando se observa algumas das considerações feitas por Jessé Souza:


O anti-intelectualismo também está na baixa classe média. Isso é importante quando queremos saber a quem Bolsonaro fala quando ataca, por exemplo, as universidades e o conhecimento. A relação da baixa classe média com o conhecimento é ambivalente: ela inveja e odeia o conhecimento que não possui, daí o ódio aos intelectuais, à universidade, à sociologia ou à filosofia[4].


O ódio que os ignorantes possuem da intelectualidade deve ser entendido como construção histórica, não podendo ser observado unicamente como fenômeno do tempo recente. Essa constatação é importante para entendermos o porquê depois de o Brasil ter passado, nos últimos anos, por uma importante transformação no âmbito da educação, inserção das camadas mais vulneráveis ao processo educacional, principalmente de nível superior, o culto à ignorância prevaleceu tão sistematicamente. A predominância da ignorância, em detrimento da emancipação, tem como explicação o medo histórico que parte considerável da sociedade brasileira tem das mudanças em curso.


O filósofo Jean Jaques Rousseau afirmou que: “[...] o homem nasce bom por natureza, mas a sociedade o corrompe[5]”. A afirmação do filósofo é importante para entendermos o fenômeno do embrutecimento como processo de construção histórica e coletiva. O processo de embrutecimento deve ser explicado por meio da ideia de longa duração, compreendido por meio da relação passado e presente. Se não olharmos para o passado histórico do país, quando veremos todos os tipos de atrocidades, genocídio, escravidão, ditaduras, golpe parlamentar, entre outros, não teremos condições de compreender o porquê o Brasil do século XXI, ou melhor, o Brasil de 2020 é um país tão bruto. Não há país bruto se a composição social não estiver embrutecida.


Embora quando se tenta reconstruir a “identidade” de alguém embrutecido tenha-se a noção de que o indivíduo está totalmente seguro das suas ações, a análise psicanalítica demonstra justamente o contrário. Na realidade, o embrutecido é alguém dominado pela constância do medo, tem medo praticamente de tudo, principalmente das mudanças sociais. Diante do medo latente não mede esforços para que a sociedade permaneça, perdão pela redundância, conservada da forma que está. Ao identificar qualquer sinalização de mudança os embrutecidos se unem para impedi-la.


Além dos fatores já mencionados, o embrutecido tem medo de assumir o protagonismo da sua própria vida, se sente incapaz de fazer escolhas, preferindo, desse modo, que a condução da vida seja feita por outrem, fator explicativo de tamanha simpatia pelos regimes totalitários. A liberdade humana amedronta o ser embrutecido. Apesar da aparência, o ser embrutecido é alguém dominado pelo medo, no entanto, não pode transparecer o medo para os pares, por isso esbraveja, fala alto, bate na mesa, aponta o dedo na cara, tem tanto apreço por armas e tem o princípio da violência como meio elementar de condução da vida...


Embora as manifestações do ser embrutecido pareçam ser mais perceptíveis no aspecto macro, machismo, racismo estrutural, entre outros, o ser embrutecido está muito mais próximo do que possamos imaginar. Por exemplo, diante da pandemia ocasionada pelo Coronavírus tornou-se fato corriqueiro acompanhar inúmeros posicionamentos de indivíduos do cotidiano defendendo a morte de outras pessoas. Não estou me referindo à perversidade do neoliberalismo brasileiro, refiro-me ao vizinho, ao colega de trabalho, ao parente próximo que afirmou e defendeu categoricamente a morte de pessoas. Não há justificativa para quem defende a morte, mas não faltam tentativas de disfarce. Por exemplo, a elite do atraso procurou disfarçar o seu desejo pela morte se escondendo através do discurso fajuto de preservação da economia.


Parte da classe trabalhadora, principalmente os informais, ficou e está muito preocupada com a quarentena, não necessariamente com a quarentena em si, mas porque percebeu que o estado brasileiro não tem política digna para garantir a sua sobrevivência. Diante da falta de opção, milhares de brasileiros estão tendo que colocar a vida em risco e dos familiares para poder levar alguns trocados para dentro de casa. Trocados que, a duras penas, garantirão a sobrevivência da família por alguns dias. Num país tão desigual como é o Brasil, trabalhar dentro de casa durante a quarentena é um privilégio. A própria definição do trabalho dentro de casa já é excludente; Home Office.


No último dia 28 de março o jornalista Breiller Pires, El País, apresentou um cenário da Avenida Paulista durante a quarentena[6]. Entre incrédulos, terraplanistas epidemiológicos, Breiller Pires encontrou trabalhadores e trabalhadoras que não tinham opção de ficar em casa, tinham que enfrentar a dura rotina de um dia logo de trabalho e, consequentemente, tinham que enfrentar o vírus para sobreviver. Perceba, não se trata de escolha, mas de falta de opção. Uma das pessoas entrevistadas pelo jornalista foi Jonas Lopes da Silva, 28 anos, pintor. Jonas não teve a opção de ficar em casa, mesmo contrariado teve que ir para o trabalho porque a empresa não havia liberado: “E os meu filhos? O presidente está errado. A coisa é muito perigosa, ninguém deveria trabalhar. Mas, como a gente combinou com o patrão, fazer o quê, né?”.


Na mesma matéria Breiller Pires traz o relato de um entregador de aplicativo de comida, William Carlos, 20 anos: “Se a gente não precisasse de dinheiro, ficava em casa, escondido desse vírus. Infelizmente não temos escolha”. O depoimento do jovem é categórico, reiterando uma tese que tenho defendido em decorrência da pandemia, a saber, o vírus não é democrático porque a população mais pobre irá sofrer as consequências da pandemia de forma muito mais intensa do que a classe média e a elite dominante.


No mesmo teor das entrevistas anteriores, recentemente o entregador de vários aplicativos de comida, Uber Eats, Rappi e iFood, Paulo Lima, motoboy, fez um desabafo sobre as condições desumanas que os aplicativos condicionavam o trabalho dos entregadores/as[7]. Segundo Paulo Lima:

“A gente não recebeu álcool em gel dos aplicativos (...) Os aplicativos não garantem alimentação para o motoboy que passa fome na rua. Você sabe o quanto é tortura um motoboy com fome tendo que carregar comida nas costas? A gente, motoboy, tem se sentido os músicos do Titanic, está vendo o barco afundar e tem que continuar tocando a música (...) A gente vê os aplicativos falando dos auxílios que eles vão dar para os restaurantes para eles não quebrarem. Motoboy quebra rapaziada (...) E outra coisa, motoboy é ser humano, mano. Tem sonho, igual todos os outros profissionais, policial, médico. A gente têm sonho, a gente chora, têm família. A gente não é só entregador de comida.

Para William Carlos, Jonas Lopes e Paulo Lima, trabalhadores precarizados, me valendo da definição de Ruy Braga[8], não há estado, há neoliberalismo, não há possibilidade de trabalho ao modo Home Office, existe possibilidade de contaminação pelo vírus. No Brasil, pessoas pobres, tais como o pintor e os entregadores de aplicativos, fazem parte dos seres invisíveis, dos humanos que não são considerados humanos. A compreensão de que não é tratado como ser humano por parte considerável da sociedade aparece na afirmação de Paulo Lima: “E outra coisa, motoboy é ser humano”. Quando um ser humano precisa gritar para todos que é humano, isso significa que a humanidade não existe mais.


O vácuo da humanidade não ficou e não fica vazio, rapidamente é ocupado pela sociedade embrutecida. É essa mesma sociedade que torna invisível e descartável uma série de seres humanos, tais como William Carlos, Jonas Lopes, Paulo Lima, ou os idosos e os doentes diante da pandemia. Para os indivíduos embrutecidos, pessoas como os representados anteriormente podem morrer. Não somente podem, desejam, mas como defendem abertamente a morte desses atores sociais.


Por exemplo, diante da pandemia e da desumanidade do neoliberalismo muitas pessoas começaram o processo de construção de uma narrativa para “justificar” a morte dos seres humanos que cotidianamente são ignorados, considerados descartáveis. Aliás, essa é uma característica do capitalismo, transformar ser humano em mercadoria. No período da escravidão foi assim, e diante do racismo estrutural tão presente nos tempos atuais não seria diferente. A forma mais comumente utilizada pelos embrutecidos para defender a morte esteve centrada na seguinte narrativa: “Ah, quem vai morrer são os velhos”... “Não, olha só, fulano morreu, mas é porque ele já estava doente”...“Não, não existe esse tanto de morte não, isso é pura invenção”.


Percebam, de acordo com a leitura dos embrutecidos as pessoas mais idosas, os pobres sem privilégio do Home Office, assim como todos aqueles que possuem doenças respiratórias, para ficar somente em alguns exemplos, estão autorizadas a morrer. Os embrutecidos não lhe deram nenhuma oportunidade de escolha, decidiram que essas pessoas podem morrer e já possuem a “justificativa” pela morte na ponta da língua, ou melhor, na ponta dos dedos. O Coronavírus desnudou o quanto somos uma sociedade constituída de seres doentes. A nossa doença é causada pela ignorância, e o resultado dessa doença é o embrutecimento coletivo.


Desembrutecer será necessário não somente para haver possibilidade de amenizar os impactos da pandemia, conhecimento científico envolvido na produção de vacina, mas para construir outro modelo de sociedade que tenha na vida o valor fundamental. Porem, presumo que o processo de humanização dificilmente acontecerá, existe, até mesmo, uma possibilidade considerável do embrutecimento se intensificar após a pandemia. O cenário que está sendo desenhado para o Brasil parece estar alicerçado em três pilares, a saber, neoliberalismo extremo, fundamentalismo religioso e consolidação do poder das milícias. Infelizmente estamos nos aproximando muito mais de uma sociedade dominada, em inteireza, pelos embrutecidos do que de uma sociedade emancipada, libertária e socialista.




Notas:

[1] O filósofo esloveno tece importantes considerações sobre o impacto do coronavírus sobre o sistema capitalista em artigo publicado recentemente no blog da Editora Boitempo. [2] O médico Dráuzio Varella foi o entrevistado do programa Roda Viva. O programa foi exibido no dia 10 de fevereiro de 2020. A entrevista encontra-se disponível no YouTube. [3] A afirmação de Paulo Freire encontra-se no livro Pedagogia do Oprimido. [4] Ao tentar compreender os motivos que levaram à eleição de Bolsonaro, Jessé Souza percebe no anti-intelectualismo uma das razões. O artigo está no site próprio do sociólogo. [5] Essa afirmação de Rousseau aparece comumente em seus livros. Para esse texto estou me valendo do livro O discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens. [6] A entrevista pode ser localizada no site do El País. [7] O depoimento do entregador foi feito ao The Intercept Brasil. É possível encontrar o depoimento de Paulo Lima no YouTube ou no site do The Intercept Brasil. [8] A politica do precariado. O livro do sociólogo Ruy Braga foi publicado pela editora Boitempo.

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