Röcken, Alemanha, 15 de outubro de 1844. Nascia um espírito indomável, irrequieto, de índole eruptiva e insubordinada. Friedrich Wilhelm Nietzsche marcou uma cisão moral na história. Nem mesmo na condição de órfão de pai aos cinco anos de idade o fez convalescer. Sua mãe e sua irmã foram âncoras para toda a vida. Da parte materna, foi instruído nos mais rigorosos princípios cristãos, anedótica controvérsia de uma alma que não se deixava convalescer por religiões. Na Universidade de Bonn, cursou teologia e filologia clássica, sua grande paixão de espírito filosófico. Por onze anos, foi catedrático na Universidade de Basiléia, onde lecionou filologia. Deixou os afazeres universitários em razão de saúde debilitada. A debilidade da alma, esta incômoda e ardil serpente, já o acometia desde tenra idade.
Sua grande obra, sua arte mais sublime, sua técnica mais sofisticada: a grande montanha, de caminhos tortuosos e espinhosos, onde, em sua caverna gélida e pálida, vive o ‘super-homem’, Zaratustra. “Assim falava Zaratustra”, o mantra do grande espírito de revolta e ironia. O homem existe e é uma coisa que deve ser superada, ensina Zaratustra a seus animais em sua caverna. Não há diabo, nem inferno. Não há Deus e nem o céu. Aliás, Deus morreu. Sua morte foi celebrada pelos homens de grande e louvável espírito de revolta. É Nietzsche que fala pela boca do grande Zaratustra?
O filósofo não se omite, não se acovarda, não se intimida. Combate com furor, ardil petulância e feroz audácia. Admite, pois, que veio a este mundo para seduzir muitos e arrastá-los para fora do rebanho. Veio para combater. Combater homens pequenos, de sorrateiros espíritos e de almas cheias de moral. Veio combater pregadores da virtude, demagogos da verdade. Combater todos aqueles que negam a vida, o corpo, a dor, o sofrimento, o desejo, a alegria, a potência. Mas exorta com muita energia: o homem desperto, aquele de espírito altivo e resiliente, admite que é todo corpo e nada mais, a alma é apenas um designativo de qualquer coisa do corpo. Há mais razão em teu corpo do que qualquer sabedoria. Eis a grande lição de Zaratustra.
Há pregadores da morte. A terra está cheia deles. Indivíduos pequenos que dizem que é preciso renunciar à vida ante uma eternidade da alma. E Zaratustra diz: ‘não! Pregadores da morte, aqueles que recusam a vida em toda sua beleza e arte. Pregadores da morte, aqueles que negam a si mesmos em prol de um ‘amor ao próximo’. Toda solidão é um erro, assim diz o rebanho da moral. Pregadores da morte são todos supérfluos, rasteiros e invejosos. Recusam a si mesmos. grande erro. Assim, - dizia Zaratustra - eu mesmo quero morrer; quero volver à terra, a fim de repousar naquela que me gerou.
Todos os deuses morreram. Agora queremos que viva o super-homem. Zaratustra não se cansava de dizer estas palavras. A morte da vida também encontra terreno fértil nos homens pequenos da ciência e da razão. Pobres homens do conhecimento. Imaginam poder dominar o universo de suas cabeças reluzentes e encefálicas. O deus da razão também está morto. Todos os deuses morreram. Jazem no túmulo da vida. Tudo é humanamente pensável, tudo é humanamente visível, tudo é humanamente sensível. O homem é uma coisa que deve ser superada.
De ironia ácida, Zaratustra redarquia: aqueles homens pequenos de moral cristã, não souberam amar o seu Deus de outra maneira, senão pregando o homem na cruz. Bela cantiga de rebanho. O mesmo se aplica ao homem do juízo moral e analítico. Diz ele que toda boa ação é desinteressada. Ora, toda ação é parte (e) parte de um desejo profundo, dotado de vontade de potência. É na vida que toda ação tem sentido, é desejo e devir. Zaratustra é espírito livre, que sobrevoa as montanhas e enxerga os homens pequenos do mais alto céu azul. Zaratustra é inimigo das algemas, aquele que ninguém presta culto e vive nas florestas.
Só há vida onde há vontade. Não vontade de viver, mas vontade de poder, de poder viver. Assim nos ensina o grande Zaratustra. A vontade de viver se constitui no eterno retorno. Tudo que é pulsão e alegria, me torna vivo no corpo e na alma, devo buscá-lo eternamente, sempre e sempre. Não é um ensinamento moral ou religioso. É uma exortação da vida, para a vida, pela vida. É preciso dizer ‘não’ à compaixão. É preciso um basta à complacência e à moral dos ‘bonzinhos’. Não confie naqueles que se alçam como pedantes da bondade, oradores da boa ação desinteressada. O homem é o mais cruel de todos os animais.
Viver eternamente tudo que me é caro aos prazeres da vida, os sentimentos mais destruidores e ardentes. Que todas as coisas tornam eternamente e nós com elas, que nós já temos existido uma infinidade de vezes, e todas as coisas conosco, diz o grande Zaratustra. O eterno retorno, a grande nostalgia da vida. Zaratustra é cercado, rodeado por homens pequenos e sorrateiros, ardis como a serpente que espreita o bote mortal. Doravante, Zaratustra escapa ao bote venenoso da serpente, porque Zaratustra é também serpente que destila veneno, o veneno da desobediência virulenta, do inconformismo e rebeldia ante a moral dos homens pequenos. Zaratustra ensina a todos o caminho para a vida vivida plenamente. É muito mais difícil dar o bem do que aceitar o bem, porque dar o bem é uma arte, é a última e a mais astuta arte da bondade.
Se alguma virtude, se alguma grande virtude há no super-homem, é não temer nenhuma proibição. Proibição à vida, ao desejo, ao afeto, aos sentimentos, ao amor, ao prazer (do corpo e da alma), à angústia, ao sofrimento e à dor. Afinal de contas, Deus morreu e agora suplicamos e desejamos que viva o super-homem.
Texto base
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Lafonte, 2017.
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