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Foto do escritorJean Carlos

MITO OU VERDADE? O ENCONTRO ENTRE D. PEDRO II E FRIEDRICH NIETZSCHE


Um dia desses uma aluna me perguntou se era verdade ter ocorrido um encontro entre o imperador do Brasil, D. Pedro II, e o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. O contexto da pergunta se deu justamente numa aula de História do Brasil, em que expunha sobre a personalidade do imperador e como sua governabilidade foi se esfacelando em fins do século XIX. Respondi que não tinha certeza e que realmente havia lido ou ouvido algo a respeito em algum lugar, sem saber precisar a fonte. Indaguei a aluna a origem da pergunta que fizera, a qual respondeu que tinha assistido a um vídeo de uma professora em uma rede social comentando o assunto. Ao final do diálogo, disse que buscaria pesquisar com calma o assunto para fornecer uma resposta coerente e minimamente embasada. 


Parti então para pesquisa e leitura de textos diversos sobre o assunto. Busquei desde artigos científicos, textos e ensaios acadêmicos, a notas e editoriais de revistas e jornais do período em que supostamente o encontro ocorreu. Dentre alguns artigos acadêmicos que encontrei, destaco o de Geraldo Dias[1], intitulado A longa história do encontro entre Nietzsche e D. Pedro II[2], onde o autor afirma, logo de início e de forma categórica, que o encontro entre o filósofo alemão e o monarca brasileiro não passa de uma anedota. Em suas palavras, “por detrás da anedota, aparentemente inofensiva, despretensiosa, escondem-se, não obstante, interesses ideológicos e políticos bem precisos, e somente por isso ela foi e continua a ser explorada, aumentada e fiada” (DIAS, 2018, p. 248). De acordo com o autor, não existem evidências históricas concretas e tangíveis que possam provar cabalmente o fato do encontro, que por sua vez, foi amplamente divulgado ao longo do tempo e de forma indiscriminada.


Para melhor compreender como se construiu o enredo dessa história, é necessário percorrer, pari passu, as primeiras versões emitidas, bem como examinar as modificações que tais versões sofreram. Além disso, é importante perscrutar as motivações, intenções e objetivos ideológicos e políticos que circunscrevem essa narrativa que ainda se difunde de modo tão eloquente no meio acadêmico e no imaginário coletivo.


Tudo teria começado com a irmã de Nietzsche, Elisabeth Föster-Nietzsche (1846-1935). Em 1912, Elisabeth teria transmitido, oralmente, a versão do encontro entre seu irmão e D. Pedro II ao diplomata russo Maurice Prozor. Dois anos depois, a própria Elisabeth Föster publica uma biografia do irmão intitulada Der Einsame Nietzsche[3], onde relata novamente o encontro, com algumas poucas alterações. Contudo, a primeira versão de fato publicada aparece numa revista austríaca, a Neues Wiener Journal[4], datada de 17 de junho de 1912, de autoria anônima, num texto intitulado Nietzsche und der letzte Kaiser von Brasilien[5]  (DIAS, 2018). Segue, na íntegra, a versão publicada na referida revista:

 

Um dia o poeta do Zarathustra atravessara os Alpes tiroleses. Em uma estação de embarque, encontrou um homem robusto e de ombros largos que, pelos hábitos e pelo sotaque, parecia pertencer a um país exótico. O estrangeiro puxou conversa com Nietzsche. Aquele homem reservado, graças ao fascínio da interessante personalidade do brasileiro, abriu-se e, ele que sempre foi dos desconhecidos, tomou confidência com o estrangeiro, do qual não conhecia o status. O imperador ofereceu ao filósofo um lugar no seu vagão, os dois empreenderam viagem sobre as montanhas e Nietzsche considerou aquelas horas [...] entre as mais interessantes de sua vida. Na estação sucessiva, Nietzsche desembarcou, enquanto o seu companheiro prosseguiu viagem. Ele pediu informações a um funcionário sobre o nome daquele senhor que, a julgar pela reverência que todos lhe demonstravam, havia de ser um dignitário espanhol de alto nível. E não ficou menos surpreso ao saber que havia conhecido o imperador do Brasil (DIAS, 2018, p. 250).

 

Embora o texto esteja permeado de um certo romantismo literário, é possível observar uma incongruência: a questão da autoria. O anonimato não faria sentido, uma vez que a história do encontro já havia sido transmitida da irmã de Nietzsche ao diplomata russo e, além disso, por ela publicada em uma obra biográfica. Seria a irmã, Elisabeth Föster, a autora do texto anônimo? Seria o próprio Maurice Prozor? Seria outra pessoa? Não se sabe ao certo. Dias (2018) aventa a possibilidade de autoria da irmã, uma vez que o texto transcrito acima guarda muitas semelhanças com o de M. Prozor, publicado na revista francesa Revue Hebdomadaire[6], em julho de 1912.


No Brasil, a versão do encontro narrada pela irmã, Elisabeth Föster, e reproduzida pelo diplomata russo M. Prozor, chega em 1912, por meio de uma publicação em uma revista semanal carioca bastante conhecida à época, a Fon-Fon. Este mesmo texto foi publicado em 1913, no diário carioca O Imparcial, do Rio de Janeiro, onde M. Prozor tece inúmeros elogios à atuação de Joaquim Nabuco à causa abolicionista. Em seguida, passa a elogiar D. Pedro II, afirmando ser um homem de grande estirpe intelectual e erudição notável, num evidente esforço para colocar o imperador brasileiro no panteão das grandes personagens históricas. Segue, na íntegra, a história do encontro escrito e publicado por M. Prozor:

 

Observe-se Dom Pedro, o mais pronto voluntário a ouvir os ensinamentos de Nietzsche, sobre a raça dos mestres e a formação do Surhomme. Um dia, atravessando o Tyrol[7], o autor de Zaratustra encontra, em uma estação, um viajante de barba branca, de traços marcantes, de falar exótico. E ele que fugia dos desconhecidos se sente logo fascinado pelo grande velho de porte comunicativo, às vezes autoritários e benevolentes. O artista, em Nietzsche, foi de início seduzido, em seguida o filósofo, na medida em que a conversa se torna mais acentuada. Assim, prontamente o interlocutor lhe oferece, para continuar, um lugar em sua cabine, e a recalcitrância usual de Nietzsche se dissipa e ele se deixa tomar pelo charme do sábio do além-mar que não se lhe revela e que, de sua parte, parecia encontrar prazer especial neste encontro. Eles se separam na parada seguinte e Nietzsche, que desce na localidade, enquanto seu companheiro prosseguiu seu caminho, pergunta o nome do estrangeiro, que ele considerou ser uma personagem de caráter e expressão respeitável. Então o senhor não sabe que este é o imperador do Brasil, responde particularmente espantado o guarda do posto, ao vê-lo seguir o imperador, sem saber com quem havia viajado. Cito um curioso episódio que me contou a Sr. Förster-Nietzsche pelo valor simbólico deste encontro, sob os alpes, de dois seres de elite que encarnam o ideal que carregam em mente; porém, ainda há uma segunda tendência na personalidade de Dom Pedro II. Da mesma forma, com efeito, que Nietzsche, tão refratário que ele foi, subjugado, sem nele ver outra coisa senão um homem de alta cultura, de humor irresoluto e porte nobre, ninguém que gravitou em torno do imperador percebeu a ascendência, sem dúvida, por assim dizer, da personalidade com quem estavam lidando. De bom grado se deu a interação (O IMPARCIAL, 1913).

 

A partir do texto, observa-se uma clara intenção em trazer à tona as qualidades morais de D. Pedro II, que com seu “velho porte comunicativo, às vezes autoritário e benevolente”, fez o filósofo seduzir-se rapidamente por aquele viajante de barba branca. A narrativa é tão elogiosa às virtudes do monarca brasileiro, que Nietzsche é colocado em uma posição secundária, como um coadjuvante, no intuito de reforçar o personagem principal, qual seja, o imperador. Na verdade, Elisabeth Föster também fará uso da “fama” do imperador brasileiro para reforçar a imagem do irmão como “grande homem das letras e ideias”. O curioso é que no texto/relato ambos não se reconheceram imediatamente, o que parece ser difícil de imaginar, já que eram homens notoriamente conhecidos naquele contexto.    


Na biografia que escreveu do irmão (Der Einsame Nietzsche, de 1914), Elisabeth Föster traz à tona um elemento adicional à narrativa. Segundo ela, Nietzsche trocava correspondências com Erwin Rohde[8], um amigo de longa data. Em uma dessas cartas, enviada da Suíça e datada a 27 de agosto de 1877, Nietzsche escreveu:

 

Quando há alguns dias, entoei no meu íntimo o meu Hino à Solidão tive de súbito a impressão de que não gostavas da minha música e pedias energicamente, uma Canção à Solidão a Dois. Na mesma noite toquei uma, do melhor modo que pude e de tal maneira que todos os anjos teriam podido escutar com prazer, particularmente os anjos humanos. Mas isto se passou numa sala escura e ninguém escutou (DIAS, 2018, p. 252).

 

Durante a transcrição do fato, Elisabeth intervém, de modo intencional, para acrescentar:

 

A observação de meu irmão de que suas fantasias ao piano não teriam sido escutadas, baseava-se num erro. Soube-se mais tarde que ouvinte muito curioso se achava à porta aberta de manso. Era D. Pedro, imperador do Brasil, que teria ficado profundamente comovido com a miraculosa execução. No dia seguinte, ambos se encontraram numa ascensão comum, sem que meu irmão tivesse a menor ideia de quem se tratava. O desconhecido exprimiu a meu irmão seu agradecimento pela esplêndida execução e a isto se seguiu longa e interessante palestra. Só depois de se terem ambos separado foi que meu irmão soube quem era o desconhecido, tratado por todos, como observara, com tanto respeito (DIAS, 2018, p. 253).

 

A verdade é que Nietzsche possuía uma atração incólume pela música. É difícil não encontrar em sua obra uma menção a ela. Para ele, a música se constitui como um antídoto ante a hipocrisia e se afigura num processo de transcendência moral. Nesta transcrição, em particular, Elisabeth se esforça para conciliar o gosto pela música do irmão (que tocava um piano) à existência de um ouvinte ilustre, que se achava “à porta aberta de manso”. O ouvinte ilustre era D. Pedro II, que teria ficado profundamente impressionado com a melodia. O relato de Elisabeth segue, posteriormente, ao fatídico encontro entre os dois ilustres personagens, ao que somente depois de uma boa conversa, Nietzsche soube se tratar do monarca dos trópicos brasileiros. Segundo Dias (2018), este relato de Elisabeth não condiz com a narrativa que ela mesma havia escrito na primeira biografia do irmão (Das Leben Friedrich Nietzsche[9], de 1912), uma vez que nesta última ela nem sequer menciona o encontro dos dois. Estaria a irmã de Nietzsche, tentando galgar para si mesma uma imagem de notória persona? E para tal fim, estaria utilizando a fama do irmão e a do célebre monarca? Questões para se pensar.


A narrativa do encontro entre D. Pedro II e Nietzsche vai ganhando contornos de veracidade à medida que se difunde por diversos meios e publicações. Em 1923, mais uma referência ao encontro é feita em um periódico italiano, dessa vez pelo então embaixador brasileiro à época, Carlos Magalhães de Azeredo:

 

Certa feita, aconteceu de Nietzsche viajar por algumas horas sobre uma ferrovia, ou em diligência, com o imperador e de puxar conversa com ele, que não revelou quem era. O filósofo poeta ficou muito contente com a conversação e, quando o seu interlocutor se distanciou, observando que lhe prestavam homenagens como a um príncipe, perguntou: ‘Mas quem é aquele homem extraordinário?’ E somente então soube que tinha conversado com o imperador do Brasil (FANZIO, 2015, p. 53).

 

Como é possível observar, a referência do embaixador brasileiro ao encontro mescla as versões de Elisabeth e a do diplomata russo M. Prozor. Nesse contexto, as duas versões da história/narrativa parecem estar em sintonia, dando um ar de legitimidade à história. Isso se torna mais evidente à medida que a história se espraia por jornais, revistas e periódicos. Quanto mais ganha as páginas, mais se difunde como fato concreto. A despeito de uma aparente estratégia deliberada que busca dar credibilidade ao encontro, quer por meio das biografias de Elisabeth, quer pelas sucessivas publicações em periódicos diversos, no Brasil, o “evento” histórico narrado parece ter sido usado para fins bastante específicos. Em 1925, no bojo do centenário de nascimento de D. Pedro II, a revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) publica uma série de textos e artigos, dentre os quais, constam alguns que mencionam a conversação entre Nietzsche e o imperador brasileiro. A autoria dos textos e artigos que referenciam o encontro segue uma ordem bastante específica, qual seja: Tristão da Cunha (crítico literário); Oliveira Lima (historiador e diplomata); Afonso Taunay (historiador e ensaísta) e Max Fleuiss (jornalista, escritor e então secretário do IHGB).


O primeiro texto, uma crônica intitulada D. Pedro e o nosso bovarismo, de Tristão da Cunha, enfatiza a reunião entre os dois ilustres personagens da seguinte forma:

 

Um dia, andando pelas montanhas do Tirol, Pedro II encontrou Nietzsche, e conversaram juntos. Tal foi a impressão deixada pelo Imperador no espírito deste, que longos anos mais tarde sua irmã, Mme. Förster-Nietzsche, relatava ao Conde Prozor, em seus detalhes significativos, o caso desta entrevista (C. D.TRISTÃO, 1925, p. 18).

 

O segundo texto, um artigo intitulado O imperador e os sábios, de Oliveira Lima, afirma que “[...] Nietzsche, porém, encontrou-o numa montanha da Suíça, ambos viajaram na mesma diligência e sem se conhecerem. Caminharam juntos, conversaram e o filósofo alemão ficou impressionado com o seu colega brasileiro” (OLIVEIRA LIMA, 1925, p. 146). É perceptível a tentativa eloquente em denotar uma aura de intelectual e erudito ao imperador. Ao afirmar que Nietzsche teria ficado “impressionado com seu colega brasileiro”, Oliveira Lima deixa explícito um ideal de defesa da monarquia e de um certo despotismo esclarecido ao regente brasileiro.


O terceiro texto, um artigo de Afonso de Taunay, intitulado A formação intelectual de Pedro II, assim descreve, com maior riqueza de detalhes, o encontro:

 

[...]. Recordarei, aqui, apenas a título de curiosidade, pouco conhecido depoimento sobre a impressão imediata causada pela cultura do imperador, depoimento da mais sabida importância por partir de um dos mais justamente célebres dos nossos contemporâneos: Frederico Nietzsche. Estava o famoso criador do super-homem numa pequena estação da Áustria, quando passou o trem em que devia embarcar, para fazer pequeno percurso. Enganando-se, foi ter a certo vagão de luxo. Verificando o erro e notando que o carro estava ocupado por alta personalidade, acompanhada de grande séquito, quis retirar-se o pensador, mas teve logo o mais amável convite do ilustre viajante a que se sentasse. Não tardou que este o interpelasse e, dentro em pouco, estivessem os dois em cerrada conversa. Uma hora mais tarde, descia Nietzsche na estação do seu destino e, absolutamente entusiasmado, indagava da identidade do interlocutor. Soube, então, surpreso que se tratava do imperador do Brasil. Muito e muito falou acerca do imprevisto encontro, literalmente fascinado pelo espírito do soberano, impressionado, ao último ponto, com o que dele ouvira. Longos anos após a morte de d. Pedro II, trouxe este fato a público o conde de Prozor, o conhecido e entusiasta propagandista da obra de Ibsen. Ouvira da viúva de Nietzsche a narrativa curiosa (TAUNAY, 1925, p. 892).

 

A intenção de Taunay aqui é clara: exaltar a erudição e a verve intelectual de D. Pedro II. O elogio é tão explícito a ponto de denotar uma qualidade moral e ética irretocável do monarca brasileiro. No intuito de dar credibilidade à sua narrativa elogiosa, Taunay procura vincular a imagem do imperador à do filósofo alemão, notadamente reconhecido por sua obra filosófica. Nada mais oportuno que colocar o monarca brasileiro na mesma condição de erudito que a de um filósofo da estirpe de Nietzsche. Mesmo que no relato anedótico de Taunay exista um erro de identidade (ele confunde “irmã” com “viúva”), é patente a intenção do nobre escritor brasileiro de valorar um projeto eminentemente nacionalista e monarquista inerente à figura de Pedro II.   


O quarto e último texto, intitulado O imperador julgado pelos intelectuais, de Max Fleiuss, reforça a ideia de um imperador acima dos “homens comuns”, justaposta à narrativa do encontro com Nietzsche:

 

Nietzsche, o bizarro filósofo que com ele viajou em caminho de ferro e discorreu algumas horas sobre os mais variados assuntos, sem conhecê-lo, interrogava após: “Quem será este homem extraordinário?”. E só mais tarde veio a saber que esse excursionista simples e encantador com quem estivera palestrando, era d. Pedro II (FLEIUSS, 1925, p. 961).

 

Vemos aqui o uso de dois adjetivos qualificadores que soam opostos, porém, atuam para reafirmar a ideia mesma de um homem acima da média e superior aos demais, no caso, este homem é D. Pedro II. Os adjetivos “extraordinário” e “simples” demonstram a intenção de Fleiuss em destacar a superioridade do imperador pelo aspecto de seu natural condição de monarca e, ao mesmo tempo, de louvável “humildade” nos gestos e jeitos de se portar. Isto é, por um lado, avulta-se as qualidades superiores de “homem extraordinário” e, por outro, retoca-se de humilde a imagem de um “excursionista simples”, a quem - imaginem - Nietzsche não soubera de quem se tratava. Parece mesmo uma narrativa muito bem construída, ao menos do ponto de vista de suas intenções primeiras. Importa acrescentar que todas as menções feitas ao encontro dispostas na revista do IHGB já haviam sido publicadas em outros jornais e periódicos nacionais e internacionais, o que reforça, do ponto de vista das fontes e documentos históricos, a intenção da elite intelectual brasileira daquele período em construir um ideal monarquista e nacionalista, tendo D. Pedro II como figura central.


Saindo dos textos publicados pela Revista do IHGB, encontramos outra menção à reunião entre D. Pedro II e Nietzsche feito por George Raeders[10], no livro O Conde de Gobineau no Brasil, de 1934. Neste relato, Raeders descreve:

 

Se não é possível afirmar que Nietzsche tenha conhecido pessoalmente Gobineau, em todo caso é certo, segundo conhecido testemunho de sua irmã, a Senhora Förster, que ele lhe estudou as obras, e, particularmente, Inégalité des Races Humaines. Mais ainda: foi D. Pedro, quando viajava incógnito pelo Tyrol, que fez partilhar ao filósofo alemão o seu entusiasmo pelas obras do escritor francês, por ocasião de um encontro casual, no decorrer de uma excursão (RAEDERS, 1934, p. 118-119).

 

Ao descrever que Nietzsche teria sido apresentado à obra e o pensamento de Gobineau por D. Pedro II num encontro casual, Raeders evoca mais uma vez a estofa de grande erudito do imperador brasileiro. Na medida em que hierarquiza a recomendação literária, ou seja, foi o imperador que recomendou a obra do escritor francês, e não o filósofo, Raeders estabelece que D. Pedro II repousaria ao mesmo nível do filósofo alemão, constituindo, dessa forma, uma aura de letrado e culto ao monarca. Chama a atenção o fato de que talvez Nietzsche não tenha ao menos ouvido falar ou sequer tido contado com textos e escritos, mesmos que residuais, de Gobineau, e que teria conhecido o escritor por meio de Pedro II. Seria mais uma forma de retocar a imagem do imperador brasileiro de homem douto e culto, ou, apenas uma mera ocasionalidade? Eis a grande dúvida.


A partir desses primeiros textos e publicações oficiais dando conta do encontro entre as duas personalidades, o que se verifica é uma disseminação contínua da versão de Elisabeth Foster, considerando, é claro, as variações existentes de uma versão para a outra. Não obstante, a narrativa da irmã de Nietzsche e das que vieram a partir dela acabaram por se enraizar no imaginário coletivo da Intelligentsia brasileira. Grandes personalidades da intelectualidade brasileira fizeram reproduzir a história/narrativa do encontro, tais como Fernando Azevedo, Sérgio Buarque de Holanda, José Murilo de Carvalho, Pedro Calmon, Ronaldo Vainfas, entre outros (DIAS, 2018). Em suas respectivas descrições, percebe-se o esteio da narrativa de Elisabeth Foster e das publicações oficiais dela decorrentes. Muito pouco ou quase nada se tem de alteração nas versões apresentadas por estes pensadores e intelectuais.


Haveria, contudo, alguma voz eloquente e cética capaz de colocar em dúvida toda essa história/narrativa do encontro entre D. Pedro II e Nietzsche? Eis que ela surge em 2 de março de 1948, numa coluna assinada por “Spectador”, no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, num texto intitulado Nietzsche e Pedro II, de autoria do jurista e jornalista alemão Ernst Feder[11]. O autor questiona a autenticidade dos relatos oficiais publicados sem qualquer fonte ou documento, que pudesse, de alguma forma, comprovar o encontro. Escreve feder: “Seria verdade ou lenda essa entrevista do soberano com o filósofo ‘que filosofava com o martelo’?”. E acrescenta: “É de estranhar que nenhuma dessas fontes alegue testemunhos ou outras provas do encontro”. Feder foi o primeiro a estabelecer um certo ceticismo em relação ao que ele denomina de “entrevista” entre o soberano brasileiro e o filósofo alemão. Contudo, o ceticismo de Feder é seletivo, uma vez que abrange tão somente as versões de Oliveira Lima, Max Fleiuss e Georges Raeders, eximindo de qualquer dubiedade a versão, segundo ele, “autêntica” da irmã de Nietzsche. O argumento de Feder para credibilizar a versão de Elisabeth Foster é que, por ser sua irmã, Nietzsche teria, “provavelmente”, lhe confidenciado o fato em um momento mais íntimo (DIAS, 2018).


A explícita contradição no argumento de feder decorre, provavelmente, de sua intenção em descredibilizar as outras versões, que segundo ele, apresentavam desvios e incongruências tênues da versão da irmã de Nietzsche. Pretendia Feder enaltecer a sua narrativa do encontro, legitimando-a como autêntica por se pautar na versão de Elisabeth Foster, tida como “confiável” por ser ela irmã de Nietzsche? Certamente o que se observa em relação a Feder e “sua” versão sobre o encontro é que seu ceticismo tenha sido contaminado, talvez, pelo nacionalismo, já que era um alemão em estado de exílio. Afinal de contas, não “pegaria” bem ir contra uma personalidade reconhecida em seu país natal e irmã de um dos filósofos mais conhecidos daquele tempo.


Em grande medida, a história/narrativa sobre o encontro entre D. Pedro II e Nietzsche, entremeado no imaginário coletivo a partir das diferentes versões apresentadas, ainda continua sendo amplamente disseminada. Exemplo recente é o livro de Maurício Torres Assumpção[12], intitulado A história do Brasil nas ruas de Paris (2014). No livro, o autor reproduz as versões do encontro de Georges Raeders e José Murilo de Carvalho, afirmando que “[...] nos Alpes austríacos de Bad Gastein, D. Pedro II recebeu a visita (...) de Friedrich Nietzsche”. Aqui, Assumpção utiliza o termo “visita”, no sentido de reforçar a estirpe intelectual de D. Pedro II, quando então, ao invés de um encontro casual, como a maioria das versões alude, o encontro teria sido uma iniciativa tão somente de Nietzsche. Assumpção vai mais longe. Chega a mencionar um outro suposto encontro entre os dois, que teria acontecido em Bayreuth, na Alemanha, na inauguração do teatro de Richard Wagner (ASSUMPÇÃO, 2014, p. 11, 131-132).


Do ponto de vista historiográfico, Assumpção não apresenta nenhuma fonte ou documento que mencione um suposto segundo encontro. O que existe são menções em que ambos, D. Pedro II e Nietzsche, tenham estado no mesmo ambiente e ocasião, mas não em companhia um do outro. É bem provável que Assumpção tenha se apropriado de um relato de Victor Hugo, renomado escritor francês, que teria presenciado outros dois encontros entre o imperador brasileiro e o filósofo alemão. Esses dois outros encontros teriam acontecido em virtude de uma viagem do soberano brasileiro a Paris, em 1877 (DIAS, 2018). É importante destacar que eram comuns as viagens do monarca brasileiro à Europa, bem como encontros e reuniões mais ou menos curtas com artistas, escritores, ensaístas e intelectuais de renome. Isso não significa afirmar, de forma contundente, que tanto D. Pedro II e Nietzsche tenham se encontrado mais de uma vez e nem que tenham conversado ou sequer trocado palavras de deferência um para com o outro.


Conforme a historiadora Ângela Alonso (2015), embora governasse um império escravista, D. Pedro II esforçava-se para projetar uma imagem ilustrada perante o mundo civilizado. Poder-se-ia deduzir, que em se tratando de duas figuras públicas reconhecidas mundialmente, muitos escritores e jornalistas tentaram galgar certa visibilidade a partir da versão do encontro descrita por Elisabeth Foster. Certamente, por esta razão, muitas das versões oficiais e não oficiais tenham se formulado de modo tão contraditório. Visto que a repercussão da versão da irmã de Nietzsche tomou proporções significativas, não seria absurdo afirmar que dela resultou um certo “imaginário coletivo” sobre a história (ou suposta história) do encontro. Desse imaginário coletivo, muitos pensadores e intelectuais, especialmente brasileiros, aproveitaram para reforçar ideologias e projetos políticos, como o do Império e da monarquia brasileira.


De parte da irmã de Nietzsche, podemos aferir que a história/anedota por ela contada do encontro entre seu irmão e o imperador do Brasil não passou de uma tentativa de dar maior credibilidade e robustez à figura do irmão-filósofo e que, por extensão, resultaria na sua própria visibilidade.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 568 p.

 

ASSUMPÇÃO, Maurício Torres. A história do Brasil pelas ruas de Paris. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014. 496 p.

 

DIAS, Geraldo. A longa história do encontro de Nietzsche e D. Pedro II. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cniet/a/Kq8B6TxT9r6Z6FhQ5SPqCJf/?lang=pt. Acesso em: 30 jul. 2024.

 

FAZIO, Domenico M. “A verdadeira história de Nietzsche e Dom Pedro II de Alcantâra, último imperador do Brasil”, in: Dogmatismo e Antidogmatismo. Filosofia crítica, vontade e liberdade. Uma homenagem a Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. Eduardo Ribeiro da Fonseca, Fernando Costa Mattos, Flamarion Caldeira Ramos. Orgs. Curitiba: Editora UFPR, 2015, p. 49-62.


RAEDERS, Georges. Le comte de Gobineau au Brésil. Paris: Nouvelles Éditions Latines, 1934.


ECKL, Marlen. “A flor do exílio”: a amizade de Stefan Zweig e Ernst Feder vista a partir do diário brasileiro de Feder. 2012. Disponível em: file:///C:/Users/Jean/Downloads/abrumer,+WebMosaica_v4n2_jul-dez2012_04_MARLENECKL.pdf. Acesso em: 28 dez. 2024.

 

Fontes consultadas


O Imparcial – Diário Ilustrado do Rio de Janeiro (edição nº 00152, de 05 de maio de 1913). Disponível em: httpsmemoria.bn.gov.brDocReaderdocreader.aspxbib=107670_01&pasta=ano%20191&pesq=&pagfis=1734>. Acesso em 19 de jun. de 2024.

 

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (tomo 98, volume 52, nº 152) onde estão as 4 versões contraditórias sobre o suposto encontro de Nietzsche e D. Pedro II. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B_G9pg7CxKSsVnk3cWRGazYxNDQ/view?resourcekey=0-6kmBeb8uqh8uwqSitJkRWw. Acesso em: 27 de agosto de 2024.


Notas


[1] Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo - PPGF-UNIFESP [...]. Disponível em: CV: http://lattes.cnpq.br/0119495005867456. Acesso em 30/12/2024.

[3] O Solitário Nietzsche (Tradução livre).

[4] Novo Jornal de Viena (Tradução livre).

[5] Nietzsche e o último imperador do Brasil (Tradução livre).

[6] Revisão Semanal (Tradução livre).

[7] Trata-se de uma região histórica, que atualmente compreende um território que fica entre a Áustria e a Itália.

[8] Ensaísta e filólogo alemão do século XIX. Era conhecido por sua amizade e intensa correspondência com Nietzsche.

[9] A Vida de Friedrich Nietzsche (Tradução livre).

[10] George Raeders (1896-1980) foi um escritor franco-brasileiro e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

[11] Ernst Feder (1881-1964) foi um dos jornalistas alemães mais respeitados e internacionalmente conhecidos. Em 1933, por ser judeu, teve que deixar a Alemanha. Depois de 8 anos no exílio na França, viajou para o Rio de Janeiro em 1941, com sua esposa Erna. Em terra brasileira, Ernst conseguiu respeito e admiração por seu trabalho como jornalista e cronista, publicando textos em diferentes e conhecidos periódicos brasileiros (ECKL, 2012).

[12] Maurício Torres Assumpção é jornalista e escritor reconhecido no meio midiático nacional. Possui alguns livros publicados em diferentes temáticas.

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