
Os anos sob o governo Bolsonaro/Paulo Guedes foram os mais tensos, dramáticos e desumanos da história recente do país. Resultado de uma junção das forças mais reacionárias da sociedade brasileira; milícia, fundamentalismo religioso, neoliberalismo, garimpo, agronegócio e aporofobia, o governo Bolsonaro criou raízes profundas nos mais diferentes espectros da sociedade. Diante da tragédia humanitária e sanitária proporcionada durante o seu governo, a simples possibilidade de Jair Bolsonaro ter sido candidato à reeleição demonstra o abismo social e institucional no qual se encontrava e, infelizmente, ainda se encontra o país.
Convivendo com um projeto de destruição, produzindo fome, mais de 30 milhões, morte, mais de 700 mil em decorrência da pandemia do coronavírus e do descaso do governo federal para com a vida da população, destruição e aparelhamento sistemático das instituições, retirada de investimentos nas áreas essenciais; saúde, educação e habitação, o mais racional seria imaginar a existência de uma revolta popular sem precedentes contra um governo que trabalhou incansavelmente para destruir o tecido social e qualquer possibilidade de existência de país.
No entanto, durante os quatro anos de governo Bolsonaro/Paulo Guedes, não houve um levante capaz de inviabilizar as políticas de destruição. Pelo contrário, em quase todas as pesquisas de avaliação do governo, a quantidade de pessoas que consideravam a gestão Bolsonaro/Paulo Guedes enquanto ótima e boa dificilmente ficava em um patamar abaixo dos 30%. Para muitos/as pesquisadores/as da extrema-direita, o percentual mencionado representaria o núcleo duro deste fenômeno ideológico. Ou seja, independentemente do que acontecesse, fome, morte, ameaça de golpe de estado, ausência de política pública, essas pessoas estavam dispostas a caminhar com o projeto de destruição até o final. E assim o fizeram.
Na concepção do filósofo Vladimir Safatle, estávamos vivenciando a reprodução de um estado suicidário no Brasil. A essência do estado suicidário, assim como ocorreu na Itália Fascista e na Alemanha Nazista, é provocar a própria destruição. Neste caso, uma autodestruição. Bolsonaro e Paulo Guedes contaram o tempo todo com este “núcleo duro”. Contingente que, na pior das hipóteses, garantiria o segundo turno do processo eleitoral. Se eventualmente o contingente não fosse suficiente para a garantia da vitória, ofereceria as condições necessárias para um golpe de estado. Ou seja, 30% de pessoas radicalizadas, em um país com mais de 200 milhões de habitantes, é uma quantidade impressionante capaz de abalar as estruturas de qualquer República.
Além do ódio, do preconceito e do ressentimento, faltavam argumentos para essas pessoas defenderem um governo que não tinha nenhuma política pública para apresentar a sociedade. Porém, o ódio contra os pobres, os pretos, as mulheres, os indígenas, a comunidade LGBTQIA+, e a todos aqueles que não praticavam o fundamentalismo religioso tem um poder de amálgama impressionante. Neste sentido, indubitavelmente a psicanálise consegue explicar o poder de atração proporcionado pelo ódio. Muitas pessoas são atraídas para um mesmo movimento em decorrência do afeto, do carinho, da alegria e da emoção. No caso dos/as adeptos/as da extrema-direita brasileira, o sentimento de pertencimento encontrou um ponto de sustentáculo no ódio.
Assim, o senhor Bolsonaro se apresentou como um representante “ideal” para esse sentimento ou ressentimento. Afinal, a carreira política deste medíocre político foi construída de que maneira? Apresentou algum projeto relevante para a sociedade? Defendeu alguma proposta que, se eventualmente fosse aprovada, melhoraria a vida da população durante as suas quase três décadas enquanto Deputado Federal? Na disputa eleitoral de 2018, alguém poderia vislumbrar alguma possibilidade de melhora das condições de vida com a possível vitória de Bolsonaro/Paulo Guedes? Dificilmente. A campanha esteve marcada por discursos violentos contra as camadas subalternas e contra a esquerda partidária. O ódio contra o povo brasileiro deslizava raivosamente pela boca do ex-capitão. Porém, conforme mencionado, o ódio tem um poder de sedução impressionante.
Durante os quatro anos de governo, Bolsonaro conseguiu mobilizar um ódio permanente numa parcela da sociedade. Toda semana existia um “inimigo” a ser odiado. Durante um determinado momento, o “inimigo” da vez acabou sendo o ex-Deputado Federal Rodrigo Maia. Na “outra semana”, diante da inserção da pandemia do coronavírus, o ódio foi mobilizado contra a OMS, depois contra os/a governadores/a, contra os/as prefeitos/as e as recomendações de isolamento social. No auge da pandemia, quando milhares de pessoas estavam perdendo a vida para o terrível vírus, o ex-presidente incentivou a invasão de Hospitais, afirmando que as mortes decorriam de outras causas, acusando os/as médicos/as de fazerem um complô contra o seu governo. Os “inimigos” passaram a ser os/as profissionais de saúde.
Depois, quando as vacinas começaram a chegar até a população, o ódio se voltou contra as vacinas e contra todos aqueles/as que incentivaram a vacinação. Quando os efeitos drásticos da pandemia, embora ainda preocupantes, estavam diminuindo e o processo eleitoral começava a aparecer no horizonte, a mobilização do ódio se voltou mais intensamente contra o STF, especialmente contra o Ministro Alexandre de Moraes. Como consequência, as urnas eletrônicas passaram a ser o alvo predileto durante todo o ano de 2022. Enfim, foram apresentados alguns exemplos, mas muito distantes de representarem a totalidade dos “inimigos” fabricados pela extrema-direita brasileira. Embora os “inimigos” fossem, em sua maioria, internos, o método implementado não tem nada de original, podendo ser localizado em outros países no qual a extrema-direita desempenha um forte protagonismo. Destaque para os Estados Unidos.
A extrema-direita brasileira, influenciada pelo fascismo histórico, criou um movimento de eterno movimento. Nesse sentido, a paralisação ou mesmo a diminuição do movimento poderia significar o fim do bolsonarismo. Para não terem este risco, os ideólogos conseguiram implementar uma mobilização permanente, construindo “inimigos” em série para serem derrotados pelos “heróis patriotas”. A capacidade de manter a base mobilizada explica consideravelmente o porquê de um projeto de destruição constante quase ter se sagrado vitorioso durante o pleito eleitoral. Movida pelo desejo suicidário, a ampla base de apoio, caso se sagrasse vitoriosa no processo eleitoral, criaria as condições necessárias para a destruição dos “inimigos internos”; pobres, pretos, mulheres, indígenas, pessoas ligadas a movimentos sociais, militantes partidários, não fundamentalistas religiosos e assim por diante. Por fim, essa mesma base de apoio caminharia em direção à própria autodestruição. A essência do fascismo é destruir tudo, até mesmo os seus apoiadores mais dedicados.
A tentativa de golpe de estado no último dia 08 de janeiro é uma consequência da mobilização permanente. Nesse sentido, engana-se quem acredita que a tentativa de golpe tenha sido a última etapa da mobilização. Talvez tenhamos visto somente o primeiro esforço. O movimento consolidou-se na sociedade brasileira, podendo sobreviver sem a sua expressão popular. A saber, o ex-presidente Bolsonaro. O fenômeno é muito maior, tem um lastro histórico e estrutural mais abrangente e significativo do que o tosco, violento e perigoso indivíduo que fornece o nome ao movimento da extrema-direita. O bolsonarismo poderá continuar ativo e mobilizado sem a presença ou sem a influência de Bolsonaro.
A situação política e social continua tensa. A possibilidade de um golpe de estado está no horizonte. Afinal, o bolsonarismo, enquanto movimento fascista, não conseguiu alcançar o seu grande objetivo. A saber, destruir os “inimigos” internos e depois proporcionar a sua própria autodestruição. Desbolsonarizar parte da sociedade brasileira tornou-se uma condição fundamental para a manutenção de um estado democrático de direito.
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